sábado, 7 de maio de 2011

A Dança Macabra

Alguns aspectos da arte inspirada no sobrenatural são por vezes relegados a um esquecimento injusto. Um dos mais interessantes e emblemáticos é a Dança Macabra, uma criação medieval que mostrava a Morte em pessoa à frente de figuras representativas da sociedade da época.(um imperador, um rei, um Papa, um monge, uma criança, uma atraente jovem) dançando como (ou com) esqueletos.

As ilustrações foram feitas após a devastação na Europa causada pela epidemia conhecida como peste negra (século XIV). Os primeiros exemplares datam do início do século XV, em igrejas da França, Inglaterra e Alemanha. A função da ilustração era, e ainda é, a de mostrar o quão frágil a vida é: não importa o quanto de fortunas ou glórias foram aqui amealhadas, na hora da morte o trabalhador e o governante são os mesmos.

A compreensão do ícone é será mais apurada se tivermos consciência de dois conceitos medievais, os termos macabro e momento mori. Macabro é uma palavra de origem francesa que provavelmente aparece pela primeira vez num fragmento de um poema de Jean Le Fevre, "Respit de la Mort"(Je fis de Macabre la danse,/Qui tout gent maine à sa trace/E a la fosse les adresse), e talvez se origine de Macabeus, os mártires cristãos que teria inventado a intercessão pelas almas do Purgatório. O termo significaria a interação dos mortos, ou da morte, com os vivos. Já o termo momento mori é a lembrança constantemente feita na Idade Média de que a morte é inevitável, que há uma outra vida e um julgamento final, portanto deve-se pesar bem o que se faz com seu tempo terrestre. Ambos os termos revelam o quanto o imaginário medieval ainda está presente na nossa sociedade, e o quanto devemos nossa formação moral e intelectual a essa época. A Dança Macabra como ícone é encontrado, além dos países citados (França, Inglaterra e Alemanha), em diversas igrejas e cemitérios na Croácia, Dinamarca, Estônia, Eslovênia e Itália).


O retorno ao medievo promovido pelo romantismo do século XIX trouxe de volta a Dança Macabra, não mais como símbolo representativo da metodologia cristã, mas como aspecto do medo e do desconhecido, que eles achavam esquecidos no mundo moderno. Goethe redescobriu a Totentanz (como é chamada a Dança Macabra em alemão), e utilizara numa balada, Der Todtentanz, e um outro alemão, Matthias Claudius, logo depois exploraria o tema no clássico Der Tod und das Mädchen (Claudius seria para sempre ofuscado pela versão musicada feita por Schubert em 1817).

A música ainda traria dois dos mais famosos exemplos de representação da Dança Macabra, na verdade mais presentes que a própria iconografia: a Totentanz, de Franz Liszt (inspirada na balada de Goethe) e a Danse Macabre (op. 40), composta por Camille Saint-Saëns. A peça de Liszt é uma série de paráfrases sobre o tema gregoriano do Dies Irae, parte da Missa de Réquiem, escrita para piano e orquestra. A obra começou a ser feita em 1840, mas só foi terminada por volta de 1850, embora só tenha tido a estréia em Haia quinze anos depois. Há registros que a inspiração de Liszt tenha vindo das ilustrações de Holbein, mas estudiosos defendem que Liszt talvez tenha tomado como inspiração “O triunfo da Morte”, encontrado num cemitério de Pisa, ou “Il trionfo della Morte”, de Andrea Orcagna. Uma outra fonte citada, certamente utilizada, foi a cena da Noite de Sabá, movimento da Sinfonia Fantástica de Hector Berlioz.

Já a Danse Macabre, de Saint-Saëns é hoje a mais citada referência do termo. Composta em 1874, estreou em 24 de janeiro de 1875 em Paris. Baseado em um poema de Jean Lahor, pseudônimo de Henri Cazalis, descreve um esqueleto, representando a Morte, que toca violino num macabro festim que começa à meia noite. Ao som do seu violino afinando, vários outros esqueletos levantam-se para dançar e o baile só termina com o cantar do galo que anuncia a aurora. O inteligente uso da orquestra serve para melhor ilustrar a história: o badalar da meia noite é feito pela harpa e pelas trompas. O primeiro violino faz a Morte, os esqueletos que bailam são representados pelo xilofone e o galo, pelo oboé.

Outras representações inpiradas pela idéia da Dança Macabra vão aparecer na musica, na literatura e no cinema. “A Máscara da Morte Escarlate” (de Edgar Allan Poe), “Uma noite no Monte Calvo” (de Moussorgsky), o desenho de Disney “The Skeleton Dance” (das Silly Symphonies de 1929), nas canas finais de “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman, etc.


A Dança Macabra como ícone foi talvez uma das maneiras usadas pelo homem para visualizar seu mais misterioso e imbatível inimigo, a morte. O vazio, a mortalidade e a dificuldade de lidar com isso após a epidemia cristalizou-se na imagem da Dança Macabra, mas sua significação medieval e cristã foi perdendo pouco a pouco lugar na vida pública. O século das luzes fez de tudo para apagar o que se considerava irracionalidade, mas o ícone ganhou novo fôlego com o romantismo do século XIX. Ele terá lugar no subconsciente enquanto existir o mistério da morte e do que virá além da vida. Hoje cada filme, gravura ou motivo de horror traz em si um pouco da Dança Macabra, e porque não dizer, a homenageia.


(autor desconhecido - há muito tempo tenho guardado este pequeno texto e não salvei a fonte muito menos o site de onde foi retirado, quem souber me avise para que seja devidamente creditado)


E para ilustrar mais como o tema que tomou conta do imaginário coletivo na Idade das Trevas, seguem seis estrofes d'Os Versos da Morte escrito no final do século XXII pelo monge-poeta francês Hélinand de Froidmont, aqui no Brasil publicado em 1996 com tradução de Heitor Megale, Professor de Filologia e Língua Portuguesa na USP. Penso que a pauta é bastante atemporal, sua contextualização não envelhece e pode tranquilamente ser aplicada aos temores contemporâneos.

3
Morte, tu que em toda parte tens renda,
Que em todos os mercados tens as vendas
Que despojas ricos e pobres,
Tu qyue sabes abater os fortes,
Tu que para os potentados fazes a lei,
Que reduzes honras a nada,
Que fazes tremer os mais poderosos,
QUe fazes resvalar os mais os mais prudentes,
Que buscas todos os caminhos,
Onde se atola frequentemente,
Saúda por mim meus amigos
Inspirando-lhes um santo temor.

13
Morte, que atacas a mulher e o homem
Porque morderam a maçã
Com toda a força tu nos flagelas;
Vai saudar a grande Roma
Que, a justo título, assim se chama
Porque ela rói, escorcha e péla
Talha a simoníaco um manto
De papa ou de cardeal; Roma
É a macete que tudo espanca
Ela faz do sebo vela,
De um legado negro como fuligem
Faz uma estrela, onde tudo é igual

26
A morte, diante da alma de elite,
Deve aceitar um limite
A seu poder e a seus direitos,
POrque a alma santa está logo quite;
Também é preciso que se pague,
Enquanto se pode, aquilo que se deve
É na alma que está sem fé
E cujo corpo age sem lei
Que a morte, para sempre, habita.
Cada um tenha, pois, piedade de si
E siga logo esta via
Para evitar a morte súbita.

29
Que valem beleza e riqueza?
Que vale a honra? A grandeza o que é?
POis a morte, bem à sua maneir,
Faz sobre nós chuva e seca,
Pois que de tudo ela é senhora,
O que se preza e o que se despreza?
Aquele que ela não aterroriza
É a quem, primeiro, a morte visa
E é a ele que ela se dirige
Corpo bem alimentado e carne requintada
Fazem dos vermes e o do fogo camisa;
Mais se desfruta, mas se machuca

35
Valho argumento que se adianta!
Era toda a ciência
De antiga filosofia
De onde nasceu a infame crença
Que tira a Deus sua providência
E diz que não há outra vida
Se se escuta esta opinião
É melhor fazer loucuras
De o que viver na continência,
mas se não há outra vida,
Entre o ser humano e o porco
Não há diferença

42
Morte, tuo corres para onde o orgulho esfumaça.
Para apagar o que le acende,
Tu mergulhas tuas unhas agudas
No rico que esquenta e suga
O sangue do pobre e o que espuma,
Riqueza, por que tu me enganas?
Mas se tem, mas se é guloso,
Por que agora é o costume,
Mais se é poderoso e opulento,
Mais se é ávido e ambicioso
Fica-se gelado de se ter plumas demais.

Um comentário: