sexta-feira, 27 de maio de 2011

Um trecho do “Canto Segundo” (Os Cantos de Maldoror - Lautréamont)


(7) Lá, em um bosque rodeado de flores, repousa o hermafrodita, profundamente adormecido na relva, molhada por seu pranto. A lua separou seu disco da massa de nuvens, e acaricia com seus pálidos raios essa doce fisionomia de adolescente. Seus traços exprimem a mais viril energia, e, ao mesmo tempo, a graça de uma virgem celestial. Nada, nele, parece natural, nem mesmo os músculos do seu corpo, que abrem seu caminho através do contorno harmonioso das formas femininas. Tem o braço recurvado sobre a testa, a outra mão apoiada contra o peito, como para comprimir os batimentos de um coração fechado a todas as confidências, oprimido pelo pesado fardo de um segredo eterno. Cansado da vida, envergonhado por caminhar entre seres que não se assemelham a ele, o desespero tomou conta de sua alma, e prossegue sozinho, como o mendigo do valo. Como obtém ele os meios de sobrevivência? Almas caridosas velam de perto por ele, que não suspeita dessa vigilância, e não o abandonam: é tão bom! é tão resignado! De bom grado, fala às vezes com aqueles que têm o temperamento sensível, sem lhes tocar a mão, mantendo-se à distância, no temor de um perigo imaginário. Se lhe perguntam porque tomou a solidão por companhia, seus olhos se elevam para o céu, mal retendo uma lágrima de recriminação contra a Providência; mas ele não responde a essa pergunta imprudente, que espalha pela neve das suas faces o rubor da rosa matutina. Se a conversa se prolonga, inquieta-se; volta os olhos para os quatro pontos cardeais do horizonte, como para tentar fugir da presença de um inimigo invisível que se aproxima, faz um brusco aceno de adeus com a mão, afasta-se sobre as asas do seu pudor despertado e desaparece na floresta. Tomam-no geralmente por louco. Um dia, quatro homens mascarados, que cumpriam ordens, atiraram-se sobre ele, e o amarraram solidamente, de tal modo que só pudesse mexer as pernas. O chicote abateu seus rudes látegos sobre suas costas, e lhe disseram que se dirigisse sem demora para a estrada que leva a Bicêtre*. Ele se pôs a sorrir enquanto recebia os açoites, e lhes falou com tamanho sentimento e inteligência sobre as muitas ciências humanas que havia estudado, demonstrando tamanha instrução, nesse que não havia ainda transposto a soleira da juventude, e sobre os destinos da humanidade, a revelar inteiramente a nobreza poética da sua alma, que seus guardiões, assustados até a medula pelo ato que haviam cometido, desamarraram seus membros quebrados, prosternaram-se de joelhos, pedindo perdão que lhes foi concedido, e se afastaram, com os sinais de uma veneração que não se concede ordinariamente aos homens. Desde esse acontecimento, que foi muito comentado, seu segredo foi adivinhado por todos, mas fingiam ignorá-lo, para não aumentar seus sofrimentos; e o governo lhe concedeu uma pensão honorífica para fazê-lo esquecer que, em um dado momento, haviam tentado interná-lo à força, sem prévio exame, em um hospício. Quanto a ele, gasta a metade do seu dinheiro; o restante, dá aos pobres. Quando vê um homem e uma mulher que passeiam por alguma alameda de plátanos, sente seu corpo fender-se em dois, de alto a baixo, e cada uma das novas partes vai abraçar um dos passantes; m isso não passa de alucinação, e a razáo logo recupera seu domínio. É por isso que não mistura sua presença, nem à dos homens, nem à das mulheres; pois seu pudor excessivo, nascido dessa idéia de não passar de um monstro, o impede de conceder sua simpatia ardente a quem quer que seja. Acreditaria profanar-se, e acreditaria profanar aos outros. Seu orgulho lhe repete este axioma: “Que cada um permaneça em sua natureza". Seu orgulho, eu disse, pois teme que, unindo sua vida a um homem ou a uma mulher, venham a recriminá-lo, mais cedo ou mais tarde, como por uma falta enorme, ela conformação do seu organismo. Então, fecha-se em seu amor próprio, ofendido por essa suposição ímpia, que na verdade só parte dele, e persiste em continuar só, em meio aos tormentos; sem consolação. Lá, em um bosque rodeado de flores, repousa o hermafrodita, profundamente adormecido na relva, molhada por seu pranto. Os pássaros, despertos, contemplam maravilhados essa figura melancólica, através dos ramos das árvores, e o rouxinol não quer que ouçam suas cavatinas de cristal. O bosque tornou-se augusto como um túmulo, pela presença noturna do hermafrodita infortunado. Ó viajante extraviado, por teu espírito de aventura que te levou a abandonar pai e mãe, desde a mais tenra idade; pelos sofrimentos que a sede te causou no deserto; pela pátria que talvez procures, após teres, por muito tempo, errado, proscrito em regiões estrangeiras; por teu corcel, teu fiel amigo que suportou contigo o exílio e a intempérie dos climas que teu humor vagabundo te fez percorrer; pela dignidade que dão ao homem as viagens por terras distantes e mares inexplorados, no meio das geleiras polares, ou sob a influência de um sol inclemente: não toca com tua mão, como se fosse um frêmito de brisa, esses cachos de cabelos espalhados pelo chão, que se misturam à relva verde. Afasta-te vários passos, será melhor. Essa cabeleira é sagrada; foi o próprio hermafrodita quem o quis assim. Ele não quer que lábios humanos beijem religiosamente seus cabelos, perfumados pelo vento da montanha, nem que contemplem seu rosto que resplandece, neste instante, como as estrelas do firmamento. Mais vale acreditar que seja uma estrela verdadeira que desceu de sua órbita, atravessando o espaço, até esse rosto majestoso, que ela envolve com sua claridade de diamante, como se fosse uma auréola. A noite, afastando com o dedo sua tristeza, reveste-se de todos os seus encantos para festejar o sono desta encarnação do pudor, dessa imagem perfeita da inocência dos anjos: o burburinho dos insetos é menos perceptível. Os ramos inclinam sobre ele sua copa cerrada, para protegê-lo do orvalho, e a brisa, fazendo ressoar as cordas da sua harpa melodiosa, envia seus acordes prazerosos, através do silêncio universal, até suas pálpebras baixadas que acreditam assistir, imóveis, ao concerto cadenciado dos mundos suspensos. Sonha que é feliz; que sua natureza corpórea se modificou; ou que, ao menos, saiu voando em uma nuvem purpúrea, até outra esfera, habitadas por seres da mesma natureza que a sua. Ah! que sua ilusão se prolongue até o despertar da aurora! Sonha que as flores dançam a seu redor, em roda, como imensas grinaldas loucas, e o impregnam com seus perfumes suaves, enquanto ele entoa um hino de amor, entre os braços de um ser humano de uma beleza mágica. Mas é apenas uma névoa crepuscular que seus braços estreitam; e, ao despertar, seus braços não a estreitarão mais. Não desperta, hermafrodita; não desperta ainda, suplico-te. Porque não queres acreditar-me! Dorme ... dorme sempre. Que teu peito se erga, perseguindo a esperança quimérica da felicidade; isso eu te permito; mas não abre teus olhos. Ah! não abre teus olhos! Quero deixar-te assim, para não ser testemunha de teu despertar. Talvez um dia, com a ajuda de um livro volumoso, em páginas comovidas, eu venha a narrar tua história, espantado com o que ela contém, e com os ensinamentos que dela se desprendem. Até agora, não fui capaz; pois, toda vez que o tentei, lágrimas copiosas caiam sobre o papel, e meus dedos tremiam, sem que fosse por causa da velhice. Mas quero ter essa coragem, algum dia. Estou indignado por não ter nervos melhores que os de uma mulher, e por desmaiar como uma moça, cada vez que reflito sobre tua grande miséria. Dorme...dorme sempre; mas não abre teus olhos. Ah! não abre teus olhos! Adeus, hermafrodita! Todo dia, não deixarei de rogar ao céu por ti (se fosse para mim, nada rogaria). Que a paz esteja em teu coração.

Notas:
*Bicêtre: hospício de Paris. Um francês dizer Bicêtre é o mesmo que um paulistano dizer Juqueri ou um carioca dizer Pinel (mandar alguém para o Juqueri, alguém estar pinel).

*Imagens aqui apresentadas foram extraídas do filme Satyricon (obra de arte de 1969) de Fellini onde o semideus hermafrodita aparece em algumas sequencias como um ser bastante frágil e albino (com sua singular palidez etérea) cuja atuação nos leva a comoção.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Revoluções: uma política do sensível


O seminário trabalhará com a relação entre estética, política e história. Não no sentido estrito da propagação das posições de engajamento político dos artistas, mas no da produção de uma política do sensível (ou de uma “partilha do sensível”, para usarmos a expressão cunhada pelo filósofo francês Jacques Rancière).

A idéia de uma política do sensível opera como uma abertura ética, presente em uma obra de arte, que rompe com os lugares-comuns do cotidiano, esvaziado pelo espetáculo dos meios de comunicação em massa. Ao recolher criticamente a tradição revolucionária esquecida, os artistas criam as condições que permitem a produção de novos sentidos comuns, ativos e críticos. Assim, as clássicas revoluções sociais, antes vistas como questões datadas, esvaziadas de sua efetividade política, ganham força novamente.
Local: Teatro Paulo Autran - SESC-Pinheiros - Rua Paes Leme, 195 - Pinheiros/SP


O Projeto Revoluções é uma realização do Instituto de Tecnologia Social - ITS BRASIL, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, do SESC-SP e da Boitempo Editorial.

Para inscrições e mais informações, clique aqui

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Reefer Madness - "If you want a good smoke, try one of these!"

Um adolescente é condenado injustamente por "matar" a namorada de 17 anos que estava sendo molestada por um maluco (um dos verdadeiros acusados) que estava em seu pico de bad vibe...Festas regadas a jazz com compassos acelerados, gente alucinada por causa do abuso de narcóticos...Você deve estar pensando em alguma manchete destes jornais de quinta categoria sedentos por sangue e audiência noticiando alguma crise de abstinência de crack, cocaína ou doses cavalares de LSD ou ecstasy. Se você pensou isso, errou...É tudo "culpa" da velha e tão perseguida maconha! Também conhecido pelo nome Tell Your Children (por aqui ganhou o título de A Porta da Loucura, numa edição inédita em DVD pela Magnus Opus) é um filme de propaganda norte americano de 1936 produzido para exibição nas escolas contra o uso de marijuana, relacionando seus efeitos à destruição dos lares e à crescente onda de loucura e violência entre a juventude.

No período pós-Lei Seca (em vigor de 1920 a 1933), foi quase óbvio constatar que grande parte da garotada rebelde e artistas (principalmente músicos) tivesse trocado os proibidos goles etílicos pelos tragos de baseado em seus momentos recreativos, isso bastou para que um grande alarde se instaurasse e a maconha fosse eleita então como a vilã número um dos "bons costumes". O exagero conservacionista de Reefer Madness acabou dando a película o status de cult, ao retratar de forma cômica e divertida os perigos de se consumir a mardita erva.

O que era para ser algo sério, acabou tropeçando em seus próprios pastiches - hoje em dia pode ser considerado mais como um documento de paródia do que uma campanha sisuda de alerta. Na sua versão colorizada é impossível não dar boas risadas das fumaças verdes, rosas-choque e laranjas (cores as quais indicavam o graus de adição)expelidas por suas personagens imbecilizadas e estereotipadas...Estes discursos preconceituoso infelizmente ecoam (em outras escalas) até nos dias, ainda mais quando confrontado pela falsa narrativa que o álcool e o tabaco, por exemplo, não produzem efeitos mais devastadores que o ganja. Os que se destacam do senso comum sabem muito que por trás da aceitação social destas "drogas lícitas" existe um ganancioso interesse de Governos que se deliciam com as estratosféricas arrecadações de impostos que seu consumo desregrado obtém. Mais um absurdo da enorme lista de hipocrisias que ditam as regras e condutas deste mundo esqualido que clama por outras medidas muito mais urgentes. Como diria o velho Shakespeare, "o diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém."

Abaixo alguns materiais gráficos usados para divulgação do filme e o link para download de uma charmosa coletânea de mesmo nome (lançada em 2004 com o subtítulo de "Vintage Drug Songs ") que conta com grandes nomes do jazz e do blues cujos temas gravados entre 1927 e 1945 versam pelo universo das dores e prazeres da vida junkie e da boemia muito antes do apogeu do rock n' roll.



Track list:
1. Victoria Spivey - Dope Head Blues (3:20)
2. Don Redman - Reefer Man (3:32)
3. Chick Webb With Ella Fitzgerald - Wacky Dust (3:03)
4. Cab Calloway - Kickin' The Gong Around (3:26)
5. Lil Green - Knockin' Myself Out (2:59)
6. Barney Bigard - Sweet Marijuana Brown (2:58)
7. Jack Teagarden, With Benny Goodman - Texas Tea Party (2:22)
8. Frankie Newton - Onyx Hop (2:46)
9. Fats Waller - The Reefer Song (If You're A Viper) (2:52)
10. Lead Belly - Take A Whiff On Me (2:59)
11. Bessie Smith - Gimme A Pigfoot (Gimme A Reefer) (3:29)
12. Jerry Kruger, With Cootie Williams - Ol' Man River (Smoke A Little Tea) (2:48)
13. Chick Webb With Ella Fitzgerald - When I Get Low, I Get High (2:26)
14. Julia Lee - Lotus Blossom (Sweet Marijuana) (3:17)
15. Cab Calloway - C Gaskill - L Mills - Minnie The Moocher (3:11)
16. Helen Ward, With Gene Krupa - I'm Feeling High & Happy (2:43)
17. Stuff Smith - Here Comes The Man With The Jive (3:01)
18. Trixie Smith - Jack, I'm Mellow (2:45)

*download it here*

sábado, 7 de maio de 2011

A Dança Macabra

Alguns aspectos da arte inspirada no sobrenatural são por vezes relegados a um esquecimento injusto. Um dos mais interessantes e emblemáticos é a Dança Macabra, uma criação medieval que mostrava a Morte em pessoa à frente de figuras representativas da sociedade da época.(um imperador, um rei, um Papa, um monge, uma criança, uma atraente jovem) dançando como (ou com) esqueletos.

As ilustrações foram feitas após a devastação na Europa causada pela epidemia conhecida como peste negra (século XIV). Os primeiros exemplares datam do início do século XV, em igrejas da França, Inglaterra e Alemanha. A função da ilustração era, e ainda é, a de mostrar o quão frágil a vida é: não importa o quanto de fortunas ou glórias foram aqui amealhadas, na hora da morte o trabalhador e o governante são os mesmos.

A compreensão do ícone é será mais apurada se tivermos consciência de dois conceitos medievais, os termos macabro e momento mori. Macabro é uma palavra de origem francesa que provavelmente aparece pela primeira vez num fragmento de um poema de Jean Le Fevre, "Respit de la Mort"(Je fis de Macabre la danse,/Qui tout gent maine à sa trace/E a la fosse les adresse), e talvez se origine de Macabeus, os mártires cristãos que teria inventado a intercessão pelas almas do Purgatório. O termo significaria a interação dos mortos, ou da morte, com os vivos. Já o termo momento mori é a lembrança constantemente feita na Idade Média de que a morte é inevitável, que há uma outra vida e um julgamento final, portanto deve-se pesar bem o que se faz com seu tempo terrestre. Ambos os termos revelam o quanto o imaginário medieval ainda está presente na nossa sociedade, e o quanto devemos nossa formação moral e intelectual a essa época. A Dança Macabra como ícone é encontrado, além dos países citados (França, Inglaterra e Alemanha), em diversas igrejas e cemitérios na Croácia, Dinamarca, Estônia, Eslovênia e Itália).


O retorno ao medievo promovido pelo romantismo do século XIX trouxe de volta a Dança Macabra, não mais como símbolo representativo da metodologia cristã, mas como aspecto do medo e do desconhecido, que eles achavam esquecidos no mundo moderno. Goethe redescobriu a Totentanz (como é chamada a Dança Macabra em alemão), e utilizara numa balada, Der Todtentanz, e um outro alemão, Matthias Claudius, logo depois exploraria o tema no clássico Der Tod und das Mädchen (Claudius seria para sempre ofuscado pela versão musicada feita por Schubert em 1817).

A música ainda traria dois dos mais famosos exemplos de representação da Dança Macabra, na verdade mais presentes que a própria iconografia: a Totentanz, de Franz Liszt (inspirada na balada de Goethe) e a Danse Macabre (op. 40), composta por Camille Saint-Saëns. A peça de Liszt é uma série de paráfrases sobre o tema gregoriano do Dies Irae, parte da Missa de Réquiem, escrita para piano e orquestra. A obra começou a ser feita em 1840, mas só foi terminada por volta de 1850, embora só tenha tido a estréia em Haia quinze anos depois. Há registros que a inspiração de Liszt tenha vindo das ilustrações de Holbein, mas estudiosos defendem que Liszt talvez tenha tomado como inspiração “O triunfo da Morte”, encontrado num cemitério de Pisa, ou “Il trionfo della Morte”, de Andrea Orcagna. Uma outra fonte citada, certamente utilizada, foi a cena da Noite de Sabá, movimento da Sinfonia Fantástica de Hector Berlioz.

Já a Danse Macabre, de Saint-Saëns é hoje a mais citada referência do termo. Composta em 1874, estreou em 24 de janeiro de 1875 em Paris. Baseado em um poema de Jean Lahor, pseudônimo de Henri Cazalis, descreve um esqueleto, representando a Morte, que toca violino num macabro festim que começa à meia noite. Ao som do seu violino afinando, vários outros esqueletos levantam-se para dançar e o baile só termina com o cantar do galo que anuncia a aurora. O inteligente uso da orquestra serve para melhor ilustrar a história: o badalar da meia noite é feito pela harpa e pelas trompas. O primeiro violino faz a Morte, os esqueletos que bailam são representados pelo xilofone e o galo, pelo oboé.

Outras representações inpiradas pela idéia da Dança Macabra vão aparecer na musica, na literatura e no cinema. “A Máscara da Morte Escarlate” (de Edgar Allan Poe), “Uma noite no Monte Calvo” (de Moussorgsky), o desenho de Disney “The Skeleton Dance” (das Silly Symphonies de 1929), nas canas finais de “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman, etc.


A Dança Macabra como ícone foi talvez uma das maneiras usadas pelo homem para visualizar seu mais misterioso e imbatível inimigo, a morte. O vazio, a mortalidade e a dificuldade de lidar com isso após a epidemia cristalizou-se na imagem da Dança Macabra, mas sua significação medieval e cristã foi perdendo pouco a pouco lugar na vida pública. O século das luzes fez de tudo para apagar o que se considerava irracionalidade, mas o ícone ganhou novo fôlego com o romantismo do século XIX. Ele terá lugar no subconsciente enquanto existir o mistério da morte e do que virá além da vida. Hoje cada filme, gravura ou motivo de horror traz em si um pouco da Dança Macabra, e porque não dizer, a homenageia.


(autor desconhecido - há muito tempo tenho guardado este pequeno texto e não salvei a fonte muito menos o site de onde foi retirado, quem souber me avise para que seja devidamente creditado)


E para ilustrar mais como o tema que tomou conta do imaginário coletivo na Idade das Trevas, seguem seis estrofes d'Os Versos da Morte escrito no final do século XXII pelo monge-poeta francês Hélinand de Froidmont, aqui no Brasil publicado em 1996 com tradução de Heitor Megale, Professor de Filologia e Língua Portuguesa na USP. Penso que a pauta é bastante atemporal, sua contextualização não envelhece e pode tranquilamente ser aplicada aos temores contemporâneos.

3
Morte, tu que em toda parte tens renda,
Que em todos os mercados tens as vendas
Que despojas ricos e pobres,
Tu qyue sabes abater os fortes,
Tu que para os potentados fazes a lei,
Que reduzes honras a nada,
Que fazes tremer os mais poderosos,
QUe fazes resvalar os mais os mais prudentes,
Que buscas todos os caminhos,
Onde se atola frequentemente,
Saúda por mim meus amigos
Inspirando-lhes um santo temor.

13
Morte, que atacas a mulher e o homem
Porque morderam a maçã
Com toda a força tu nos flagelas;
Vai saudar a grande Roma
Que, a justo título, assim se chama
Porque ela rói, escorcha e péla
Talha a simoníaco um manto
De papa ou de cardeal; Roma
É a macete que tudo espanca
Ela faz do sebo vela,
De um legado negro como fuligem
Faz uma estrela, onde tudo é igual

26
A morte, diante da alma de elite,
Deve aceitar um limite
A seu poder e a seus direitos,
POrque a alma santa está logo quite;
Também é preciso que se pague,
Enquanto se pode, aquilo que se deve
É na alma que está sem fé
E cujo corpo age sem lei
Que a morte, para sempre, habita.
Cada um tenha, pois, piedade de si
E siga logo esta via
Para evitar a morte súbita.

29
Que valem beleza e riqueza?
Que vale a honra? A grandeza o que é?
POis a morte, bem à sua maneir,
Faz sobre nós chuva e seca,
Pois que de tudo ela é senhora,
O que se preza e o que se despreza?
Aquele que ela não aterroriza
É a quem, primeiro, a morte visa
E é a ele que ela se dirige
Corpo bem alimentado e carne requintada
Fazem dos vermes e o do fogo camisa;
Mais se desfruta, mas se machuca

35
Valho argumento que se adianta!
Era toda a ciência
De antiga filosofia
De onde nasceu a infame crença
Que tira a Deus sua providência
E diz que não há outra vida
Se se escuta esta opinião
É melhor fazer loucuras
De o que viver na continência,
mas se não há outra vida,
Entre o ser humano e o porco
Não há diferença

42
Morte, tuo corres para onde o orgulho esfumaça.
Para apagar o que le acende,
Tu mergulhas tuas unhas agudas
No rico que esquenta e suga
O sangue do pobre e o que espuma,
Riqueza, por que tu me enganas?
Mas se tem, mas se é guloso,
Por que agora é o costume,
Mais se é poderoso e opulento,
Mais se é ávido e ambicioso
Fica-se gelado de se ter plumas demais.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Only Theatre of Pain - reissue # 2

Divulgados os nomes dos sons inéditos presentes no compacto 7" que vem como extra em sua versão long play (prensado em vinil violeta). Trata-se de "Cavity: First Communion" (Alternative Version) e "The Lord's Prayer". Além deste imperdível item, quem adquirir as primeiras cópias do bolachão também será contemplado com um poster promocional. Segue a tradução de "Cavity" e algumas imagens desta edição comemorativa para deixar os fãs mais instigados.

Cavidade - A Primeira Comunhão

Vamos desvelar o problema da disciplina
Vamos dar início a uma ilusão
com a mão e a caneta
Releia as palavras e comece de novo
Aceite o dom do pecado
O dom do...
O prazer está sangrando ao sufocar das palavras
As quatro paredes drenam-me de toda a imaginação
Gritando alto para receber a ordem de permanecer parado
Gritando alto para receber a ordem de permanecer parado
O preço da morte vermelha
é o preço do amor verdadeiro
A rainha Negra salta através de minha pele
O rei dos corações aguarda próximo ao lar
Alguém faz disparos lá fora
O dedo no gatilho arde de desejo
outro alvo se movendo
mais sangue em sua sobrepeliz
Mais sangue pelo preço da morte vermelha
Te prego contra a parede
Te prego contra o misticismo espanhol
te prego contra a parede
Três disparos ressoaram feito gritaria
Quem tem vontade de fazer o papel de soldado romano
que mantenho dentro de mim?
Artista perene, o que você vê?
O que você vê?
Meu receio oculto de estar sozinho
Eu sento e agarro minhas próprias mãos
Sento e faço amor comigo mesmo
Tenho sangue em minhas mãos
Tenho sangue sobre as suas
Sangue nas mãos
Sangue...

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Only Theatre of Pain em reedição histórica

Hoje o selo americano Frontier Records colocou no mercado mais uma edição (em vinil e em cd) de um dos seus maiores orgulhos: o emblemático álbum de estréia do Christian Death: Only Threatre of Pain que, para muitos, é considerado o único e verdadeiro da carreira da banda. O fato é que se trata de um clássico, pois sem dúvida continua sendo referência de um gênero que viria ser chamado de "deathrock". Quando foi lançado em março de 1982, o LP "maldito" foi bem recebido até mesmo pela crítica européia (em especial na França) que considerava o Christian Death como uma boa aposta já que percebeu em seu som aspectos em comum à outras bandas punk-gothique que começavam a apontar nas paradas independentes do velho continente. Se de um lado as considerações positivas da imprensa e o boicote por parte de grupos religiosos conferiram ao disco status de "cult", nos bastidores as coisas não iam nada bem. Num certo momento as diversas substancias ingeridas pelos integrantes serviram de combustível para a gestação do disco, contudo, o abuso e seus efeitos colaterais acabaram impondo o fim prematuro da banda meses depois de ser concebido. Rozz acabaria reformando o grupo no final de 1983 (meio a contra gosto, já que sua idéia era formar outro projeto chamado Daucus Karota) desta vez com line-up completo por músicos do Pompeii 99. Depois de gravar mais dois álbuns, Rozz decidiu abandonar o barco de vez, porém não imaginava que os membros desta nova encarnação roubariam sorrateiramente o nome "Christian Death" partindo sem ele para uma longa estada na Europa, fato que deu início a uma das mais controvérsias brigas já relatadas na história da música alternativa.

Longe destas confusões, a Frontier se manteve firme na projeção neutra do disco, de forma que não fosse confundido como parte da discografia da banda genérica que permanece até hoje sub a tutela de Valor Kand. Com catálogo relativamente pequeno (mas com nomes de peso da cena punk/hardcore de Los Angeles), o selo tem o Only Threatre of Pain como seu disco com mais êxito comercial, o que resultou em mais de dez licenciamentos pelo mundo a fora. Em suas diversas reedições (exceto as francesas, cujas capas foram completamente modificada), o álbum recebeu poucas alterações gráficas, limitando-se mais na variação das tonalidades ou e na prensagem de vinil colorido, contudo desta vez a coisa é mais ousada e merece destaque: a nova edição conta com a arte original (desenho e caligrafia feita a mão por Rozz) sem retoques e ajustes de pós-produção presente nas versões anteriores. O encarte foi recheado com mais fotos de Ed Colver, responsável pela maioria dos cliques da banda na sua fase inicial. Seu track list não mudou nada; no entanto foi devidamente remasterizado a partir dos tapes originais. O cd, como de hábito, trás as demos do EP Deathwish como bônus. Já o vinil, em sua primeira tiragem limitada, vem com um compacto 7" contendo duas músicas nunca antes lançadas, o que torna esta nova versão muito mais atrativa e histórica.

Para comemorar este relançamento à altura, está agendada para o próximo dia 8, em Los Angeles, uma festa no club The Echo que contará com apresentação de Rikk Agnew e 45 Grave tocando temas do Christian Death original. Um ótimo programa pra quem mora para aquelas bandas...

Maconha, uma planta medicinal

A atual legislação do país sabota a pesquisa e impede a exploração assistida das baratíssimas propriedades medicinais da maconha

Houve época em que o uso de determinadas plantas medicinais era considerado bruxaria, e às almas das bruxas restava receber benevolente salvação nas fogueiras da Inquisição. Atualmente, o estigma que a maconha carrega faz, para muitos, soar como blasfêmia lembrar que se trata, provavelmente, da mais útil e bem estudada planta medicinal que existe.

Pior, no Brasil, se alguém quiser automedicar-se com essa planta, mesmo que seja para aliviar dores lancinantes ou náuseas insuportáveis, será considerado criminoso perante uma lei antiética, sustentada meramente por ignorância, moralismo e intolerância.

Apesar de sua milenar reputação medicinal ser inequivocamente respaldada pela ciência moderna, no Brasil, a maconha e seus derivados ainda são oficialmente considerados drogas ilícitas sem utilidade médica. Constrangedoramente, acaba de ser anunciado, na Europa e nos EUA, o lançamento comercial do extrato industrializado de maconha, o Sativex, da GW Pharma.

Enquanto isso, nossa legislação atrasada impede tanto o uso do extrato quanto o uso da planta in natura ou de seus princípios isolados.

Consequentemente, pessoas em grande sofrimento são privadas das mais de 20 propriedades medicinais comprovadas nessa planta.

Um vexame para o governo brasileiro, já que, em países como EUA, Canadá, Holanda e Israel, tais pessoas poderiam, tranquila e dignamente, aliviar seus sofrimentos com o uso da maconha e ver garantido seu direto de fazê-lo com o devido acompanhado médico.

Ingeridos ou inalados por meio de vaporizadores (que não queimam a planta), os princípios ativos da maconha podem levar ao alívio efetivo e imediato de náuseas e falta de apetite em pacientes sob tratamento quimioterápico, de espasmos musculares da esclerose múltipla e de diversas formas severas de dor -muitas vezes resistentes aos demais analgésicos.

Pesquisas recentes indicam também o potencial da maconha para o tratamento de doença de Huntington, do mal de Parkinson, de Alzheimer e de algumas formas de epilepsia e câncer. A redução da ansiedade e os efeitos positivos sobre o estado emocional são valiosas vantagens adicionais, que elevam sobremaneira a qualidade de vida dessas pessoas e, por conseguinte, seus prognósticos.

A maconha não serve para todos: há contraindicações e grupos de risco, como gestantes, jovens em crescimento e pessoas com tendência à esquizofrenia. Em menos de 10% das pessoas o uso descontrolado pode gerar dependência psicológica reversível. Mas, ponderados riscos e benefícios, para a grande maioria das pessoas, a maconha continua a ser remédio seguro.

A biotecnologia brasileira tem todas as condições para desenvolver variedades com diferentes proporções de princípios ativos, reduzindo efeitos colaterais e aumentando a eficácia das plantas (ou de seus extratos) para cada caso.

Indiferente, contudo, à ciência e à ética médica, a atual legislação brasileira sabota nossa pesquisa básica, clínica e biotecnológica nessa área de ponta e impede por completo a exploração assistida das preciosas e baratíssimas propriedades medicinais dessa planta.

É hora de virar esta página carcomida pelo obscurantismo e pelo desdém com o sofrimento humano, fazendo valer não apenas direitos fundamentais dos indivíduos mas também as próprias diretrizes da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, que, segundo o Ministério da Saúde, tem por objetivo: "garantir à população brasileira o acesso seguro e o uso racional de plantas medicinais e fitoterápicos, promovendo o uso sustentável da biodiversidade, o desenvolvimento da cadeia produtiva e da indústria nacional".

Renato Malcher Lopes, neurobiólogo, mestre em biologia molecular e doutor em neurociências, é professor adjunto do departamento de fisiologia da Universidade de Brasília e coautor, com Sidarta Ribeiro, do livro "Maconha, Cérebro e Saúde".