sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Christian Death - pecado e sacrifício - part II


Não haverá história mais difícil de contar do que a do Christian Death. Existem muitas incertezas com relação a alguns fatos que sempre foram apresentados como verídicos, pelo meio existem histórias cruzadas de amores, traições e ódios. O Christian Death chegou a ser duas bandas distintas ao mesmo tempo em continentes diferentes e a editar discos sob o mesmo nome, tal deve-se a duas pessoas: Rozz Williams e Valor Kand.
Esta é a minha versão bem resumida dos fatos. Como admirador sem idolatrar nenhum dos líderes, nem menosprezar o outro (claro que, muitas vezes, Valor nos tira boas risadas), ambos deram a sua contribuição para o projeto, cada qual à sua maneira e dentro das suas limitações.
Fundado em 1979, por Rozz Williams (nascido Roger Allan Painter – criado num berço batista), o Christian Death assumiu desde logo um papel de liderança e inovação na cena alternativa da costa oeste americana. O punk estava, como na Europa, em pleno declínio. O hardcore veio para dar mais aquela acentuada ao discurso. Era possível colocar o dedo na ferida com mais pressão levantando o tom contra as instituições conservadoras. A banda ao invés de dar mais peso ao som decidiu seguir um caminho mais mais experimental, sombrio e sua imagem andrógina era uma afronta até aos entusiastas mais radicais (era muito comum Rozz ser agredido durante os shows por punks, skinheads etc). Que eu me lembre, não surgiu depois deles nenhum nome na chamada "música gótica" que tenha tanta força e misticismo, fato que fez legado nunca parar de crescer.
Em 1982 foi editado o seu primeiro álbum, “Only Theatre of Pain”, uma obra prima do gênero ainda hoje classificado como um dos melhores documentos do subgênero batizado pelo próprio Rozz de “deathrock”. Por esta altura ele contava com os parceiros Rikk Agnew (guitarra, no lugar de John “Jay” Albert, vindo do lendário Adolecensts), George Balanger (bateria) e James McGeartly (baixo). Além destes, disco contou com os backing vocals de Ron Athey e Eva O., também protagonistas dos acontecimentos mais bizarros das sessões movidas a speedy e outros aditivos. 
Um registro sublime de Rozz, com temas como "Cavity - First Communion", "Romeo's Distress" e "Spiritual Cramp" que levaram rapidamente o Christian Death ao sucesso e desde o logo se firmaram como "farol de almas danadas". Um misto de satanismo (... Satan is by far the kindest guest...) e romantismo, algo de muito belo e poderoso, mas ao mesmo tempo infame e surrealista, “Only Theatre of Pain” é um disco que talvez classificasse nos 10 melhores discos alternativos da década de 1980. Mas, devido ao uso abusivo de drogas, começam as confusões que iriam acompanhar para sempre a banda e, sobretudo o seu líder. Rikk e Balanger são os primeiros a debandar, sendo substituídos por Eva O. (guitarra) e Rod China (bateria). 
O grupo finalmente extinguiu-se com a saída de todos os músicos que acompanhavam Rozz e este acaba por aceitar o convite de um editor francês (Yan Farcy, dono da L'Invitation Au Suicide,) mudando-se para Paris na companhia de Valor Kand (guitarra/vocais), Gitane Demone (teclados/vocais) e David Glass (bateria), todos originários de uma banda chamada Pompeii 99 (que estava prevista acompanhar o Christian Death na sua excursão pela Europa quando subitamente se desfez). A baixista Constance Smith é escalada para completar o line-up.
Em 1984, e já sobre a mágica influência de Paris, sai “Catastrophe Ballet” (gravado no País de Gales, no lendário Rockfield Studio onde já tinham passado Bauhaus, The Cult etc). A banda muda ligeiramente de rumo; abandona a sonoridade “punk” de “Only Theatre of Pain” (que tanto agrada) deixando também de lado um pouco do seu ódio à religião e adota um estilo mais melódico, mesmo frágil comparado com a agressividade do seu antecessor. O resultado é, no entanto, igualmente brilhante. Seguiu-se uma breve turnê pela Europa para a promoção do disco. Contance abandona o barco dias depois do inicio da excursão, sendo substituída pelo ilustre Dave Roberts (Sex Gang Children), que conheceram no club Batcave, único local onde a banda tocou em sua rápida passagem por Londres.
No ano seguinte e de volta a Los Angeles, o Christian Death edita “Ashes”, um álbum que ficaria como legado mais expressivo da união entre Rozz e Valor (e onde aparece pela primeira vez Sevan Kand, filho de Valor e Gitane, que contribuiu com um choro numa das faixas). Curiosamente a banda apenas fez uma aparição após o lançamento; uma performance chamada The Path Of Sorrrows (contava com o show da banda, happening e um banquete). Rozz Williams decide então abandonar o projeto tento ficado claro (ao que se diz, embora eu tenha algumas dúvidas) que Valor e Gitane seguiriam para Europa previsto para prosseguir com a divulgação do trabalho, como condição eles mudariam o nome da banda para For Sin And Sacrifice Must We Die A Christian Death e apenas usariam material no qual tinham trabalhado.
Ao contrário do acordo, Valor decidiu apodera-se do projeto por completo. Chegou à Europa e não só não mudou o nome da banda como inclusive tocavam temas de “Only Theatre of Pain” nos shows, um álbum todo feito por Rozz que nada tinha a ver com ele uma vez quem nem sequer se conheciam na altura. Alguns fãs ficaram confusos com a situação e dividiram-se. De um lado os seguidores de Rozz acusavam Valor de traição chegando mesmo a por em causa as suas qualidade de músico e duvidando de sua devoção à “causa gótica” (ele sempre esteve mais inclinado ao heavy metal) e para muitos o Christian Death morrera ali. Por outro lado, ouve aqueles que nem sequer perceberam o que realmente havia acontecido, ou mesmo admitiram ter sido um ganho para o projeto a passagem de Valor para dono e senhor do mesmo. Julgo que ambos os casos terão suas razões (há sempre duas verdades, pelo menos).
Não terá sido o fim da banda. Nem Valor será um completo traidor (o acordo de usar o nome ficaria acertado por contrato entre em ele, Rozz e Gitane), mas também não chegará à generalidade de Rozz. Visto por qualquer fã mais recente toda a situação não poderá deixar de parecer no mínimo caricata; a banda nasce, lança um álbum e muda todos os músicos à exceção do seu líder que mais tarde acaba por ser quase “expulso” por um guitarrista e sua esposa que a ele se junta para preencher a saída dos músicos iniciais. Bizarro, no mínimo. 
Apesar disso, o primeiro disco saído da nova realidade do Christian Death, “The Wind Kissed Pictures” (EP), seria lançado na Itália sob o nome de The Sin and Sacrifice of Christian Death, mas logo depois “Atrocities” (1986) já seria novamente editado sob o nome de Christian Death. Neste disco, Valor conta com a contribuição do guitarrista Barry “Bari-Bari” Galvin (futuro Mephisto Walz), responsável por boa parte da base harmônica do disco. Rozz, entretanto, seguia seus projetos paralelos, sobretudo o Premature Ejaculation (reformulado com Chuck Collision), ligado mais experimentações, colagens sonoras e perfomance, bem como o Heltir e Shadow Project que eram alvo de maior atenção de sua parte.
Por seu lado, Valor continuava a perpetuar a infâmia do Christian Death através de um novo registro – “The Scripiture (A Translation of World Belief’s by Valor)” (1987), onde trás sua versão da bíblia e outros textos sagrados. Não deixa de ser um bom disco, que trás as primeiras incursões “metaleiras mezzo pop” do músico que investe em refrões fáceis como em “Sick of Love”. “1983”, cantada por Gitane, é uma das mais belas covers de Jimi Hendrix feitas até hoje. 
Ficaria clara a intenção da banda em alcançar um publico maior que não se restringisse ao que definira como Christian Death Society (grupo de fãs e pessoas que compartilhavam dos mesmos ideais, um deles absurdos como a profecia de Nostradamus que previa o fim do mundo em 1999 e que os obrigaria a um êxodo para o Pólo Norte). O clipe do single “Church of No Return” chega a ser exibido em alguns programas de TV. De uma pequena banda de garagem de Pomona, o nome Christian Death ficaria associada a um punhado de referencias e imagens constrangedoras, tanto no seu apelo vulgar (blasfêmias com apelos sexuais desnecessárias) quanto ao gosto pra lá de duvidoso do Sr. Valor Kand que causa quase sempre ondas fortes de vergonha alheia com seu estilo Cigano/Luis Caldas. As outras investidas em clipes é um verdadeiro desfile de mau gosto e amadorismo.
Por fim em 1988 seria editado “Sex & Drugs & Jesus Christ”, o ultimo disco que contaria com a participação de Gitane Demone e que seria o mais polêmico (e com maior êxito comercial) de todos os trabalhos até então apresentados. Desde logo a capa, a meu ver a melhor produzida por esta encarnação, foi imediatamente censurada por ser demasiada ofensiva. Depois, toda a estrutura musical do disco mereceu forte criticas por parte de alguns “profissionais” da música, acusando Valor de um primarismo aberrante e Gitane de uma colocação de voz no mínimo irrisória. Embora eu não concorde com toda a crítica (há sim uma produção meio tosca, mas não sei afirmar se foi proposital), julgo mesmo que se trata de um dos melhores trabalhos do Christian Death (Valor).
Estávamos, pois, em 1990. Valor depois do lançamento de “Sex & Drugs & Jesus Christ” fez uma pequena pausa. A italiana Contempo lança”Insanus, Ultio, Proditio, Misericordiaque”, coletânea de outtakes, entre eles “Infans Vexatio”, uma versão retrabalhada de “Lullaby" (musica de 1984), cantada por Rozz. Daí, surgiram as especulações de uma reunião. Na verdade apenas a sua base instrumental fora regravada e os vocais originais foram mantidos com alguns efeitos; é uma peça meio “bluesy”, bem diferente da pegada do restante do repertorio que compõe o álbum “Catastrophe Ballet”.
Adverso a qualquer reconciliação com Valor, Rozz, por sua vez, cedera ao convite de um selo para reformular o Christian Death. Confuso? Ele junta-se de novo com Rikk Agnew (guitarra), Eva O (backing vocal), Casey (baixo) e Cujo (bateria) para uma serie de apresentações nos buracos mais podres dos EUA e Canadá. Essa digressão terminaria no ano seguinte seria imortalizada no cd “Sleepless Night: Live in 1990”, seguindo-se de “The Iron Mask” (1992), álbum que trás releituras de músicas antigas, inusitadamente lançado também em LP (lá fora, até então só tinham versões em cd) no Brasil pelo pequeno selo Bullet Records. Rozz acaba declarando que este disco foi um erro por não gostar da sua sonoridade, tendo decidido que os seguintes registros iriam pegar exatamente onde tinha deixado a banda alguns anos antes, por altura de”Ashes”. O contrato com a Cleopatra fora firmado um pouco antes deste lançamento com o solo “Every King A Bastard Son” – um disco perturbador de spoken words. 
Assim, em 1993 seria editado “The Path Of Sorrows”, descrito por Rozz como sendo seu disco favorito do Christian Death. E o mesmo tempo veria luz também “The Rage Of Angels” que, embora tenha sido fruto das mesmas sessões de estúdio e sobras de material do Shadow Project, soaria diferente do seu irmão gêmeo, sendo mais agressivo. Rozz fez menção de afirmar que era o mais pesado documento desde “Only Theatre Of Pain”. Depois destes trabalhos, Rozz prosseguiria com os seus projetos paralelos. 
Por seu lado, Valor tinha feito algo parecido quatro anos antes, lançando simultaneamente os álbuns “All The Love” e “All The Hate”, que contavam com a participação do guitarrista Nick The Bastard e do seu filho Savan Kand (com oito anos na época), presente na faixa “I Hate You”. 
Ainda em 1993, Rozz, entretanto, faria um novo concerto alguns membros da formação original que ficaria registrado no álbum “Iconologia” (Triple X) e no VHS “Live” (Cleopatra). Este concerto é marcado por várias controvérsias como a prisão de Rozz no dia anterior por posse de heroína e a briga com Rikk Agnew que abandona a banda antes do fim do show, sendo substituído pelo seu irmão Frank Agnew, que toca o restante do set atrás do palco. 
Em 1994 segue o lançamento do seu EP “Shrine”, do projeto Daucus Karota – um híbrido de proto-punk e glam rock. Neste mesmo ano, através de Nico B (diretor do curta Pig) Rozz voltaria a reencontrar Gitane Demone. Desta reunião nasceria o álbum “Dream Home Heartache”, com seu estilo “cabaret decadence”. Paralelamente Valor reformaria seu Christian Death e lançaria depois um hiato o álbum “Sexy Death God”, seguido do ao vivo duplo “Amen”, discos já contavam com a parceria da baixista Maitri.
Em 1997 saiu o ultimo álbum de estúdio de Rozz Williams, o semi-acústico “From The Heart”, novamente com sua companheira de sempre Eva O, no Shadow Project, desta vez sem a colaboração de Paris. Muito pobre e doente Rozz cometeria suicídio no dia primeiro de abril de 1998, em seu apartamento em West Hollywood. 
Deste modo Valor torna-se o dono absoluto e legal do nome Christian Death, para insatisfação de uns e agrado dos mais devotos. Num jogo de erros e acertos, fica claro que os equívocos, talvez propositais, mantém vivo o que chamo de idéia, e não propriamente uma banda. Embora seja muito distante e destina do grupo original, não há outra maneira de classificá-la a não ser por este nome. Faz parte da saga...

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