segunda-feira, 14 de julho de 2014
A melancolia vibrante dos Chameleons
Prometi uma vez que escreveria algo sobre os The Chameleons, uma das minhas bandas de cabeceira. Bem, o selo Blue Aplle não tem deixado a desejar quanto aos relançamentos da banda. Porém, dificilmente veremos por esta pequena editora uma reedição do álbum Strage Times, uma vez que os direitos pertencem a major Geffen. No entanto, para compensar, eu deixa deixo a disposição aqui um texto que o lusitano Luís António Coelho fez há mais de anos atrás para seu extinto blog. Além de nos instigar a uma audição mais apurada deste clássico, este artigo não deixa de ser um dos únicos tratados bem escritos na lingua portuguesa sobre este que é um dos maiores rebentos pós-punk de Manchester.
Por muito inovadoras e alternativas que se julguem, a maior parte das bandas de rock alternativo passam a vida a fazer o mesmo álbum. E normalmente, fazem-no cada vez pior. É uma característica que se tem acentuado na última década e que, inevitavelmente, irá também afectar as bandas que surgiram nesta última fornada. Por muitos elogios que a crítica ainda dedique aos Strokes, aos Franz Ferdinand, aos Kaiser Chiefs e aos Interpol, daqui a dois ou três anos esses mesmo críticos vão estar de costas voltadas para elas a cavarem a sua sepultura e a anunciarem as próximas grandes bandas que, essas sim, é que serão o supra-sumo da barbatana do rock alternativo. Alguém, por acaso, ainda se lembra do endeusamento que crítica fez dos Suede, dos Manic Street Prechers, dos Placebo e dos Kula Shaker durante os anos 90?
Os Chameleons foram uma banda de rock alternativo dos anos 80 que passou a vida a fazer o mesmo álbum e a fazê-lo cada vez melhor. Apesar de não andarem muito longe daquilo que os The Sound, The Church, os U2 e os Echo & Bunnymen faziam em meados dos anos 80, os Chameleons tinham uma sonoridade única, tão apaixonada como nostálgica, e rapidamente identificável. Mark Burgess (voz e baixo), Reg Smithies (guitarras), Dave Fielding (guitarra e teclas) e John Laver (percussão) criavam hinos, mas também evocações, despertavam angústias, mas também conforto, e a sua energia, apesar de melancólica, nunca é depressiva. Pelo contrário, a melancolia dos Chameleons é o melhor antídoto contra a depressão, porque é uma melancolia vibrante. A melancolia de estar sozinho na praia, num dia de inverno, a ouvir o som arrebatador e intimista do mar, sabendo que não há mais nada que nos faça sentir tão próximos nós mesmos. E mesmo quando é amargurada, nunca nos faz sentir derrotados. E mesmo quando é revoltada, nunca é simplista nem degradante. Um som visceral e onírico que nos faz também sentirmo-nos ouvidos. E não há música mais bela do que aquela que desperta no ouvinte a sensação de estar ele próprio a ser ouvido.
Se descontarmos a colectânea de primeiras gravações da banda, intitulada The Fan & the Bellows, a primeira versão de Strange Times teve o nome de Script of the Bridge. Datada de 1983, é já uma obra-prima, porque qualquer álbum que comece com "Don’t Fall" e termine com "View From a Hill", e pelo caminho tenha, entre outras preciosidades de valor incalculável, um monumento chamado "Second Skin", só pode ser uma obra-prima. Mas a segunda versão, de 1985, é ainda melhor. Chama-se What Does Anything Mean? Basically e, para além de ser o álbum que os Interpol gostavam de já ter criado, mas ainda não conseguiram, apresenta uma banda já perfeitamente consciente da sua singularidade.
Strange Times é a versão definitiva do testamento que os Chameleons tinham vindo a preparar ao longo dos anos. É um dos melhores álbuns de sempre da história do pop/rock, com uma música, "Swamp Thing", que só por si vale mais do que a discografia inteira de qualquer banda que a imprensa musical nos últimos anos tenha classificado como “the next big thing”. Porque é que nunca é mencionado nas listas de melhores álbuns de sempre daquelas publicações que só sabem fazer listas dos melhores álbuns de sempre?, não faço a mínima ideia. Mas sei que os críticos são suficientemente acomodados para pensarem que só porque conhecem os Sonic Youth, os Jesus & Mary Chain, os Pixies e os Stone Roses, já acham que sabem tudo o que é preciso saber sobre o rock alternativo dos anos 80.
Não é por acaso que Strange Times foi também o último álbum dos Chameleons (pelo menos, até 2001, quando Mark Burgess e companhia decidiram, surpreendentemente, voltar a juntar-se para lançarem Why Call It Anything?). É o álbum que, ao mesmo tempo que apresenta a maior evolução na identidade sonora da banda, sugere também uma atmosfera de despedida, ou de regresso a casa, que não se sentia nos discos anteriores. E isso torna-se bem claro pelo seu alinhamento. As cinco primeiras faixas são, todas elas, criações únicas na discografia da banda, tanto em termos de estrutura como na sua dimensão atmosférica, e não fariam sentido em nenhum dos álbuns anteriores. Mas são também canções que não se imagina mais nenhuma banda a criar sem parecer estar a querer imitar os Chameleons. As cinco faixas seguintes, que se sucedem uma às outras sem espaços de intervalo, formam uma espécie de unidade conceptual, simultaneamente épica e contemplativa, com uma doçura nostálgica sem a qual a música dos Chameleons deixaria de poder soar a Chameleons, criando uma visão retrospectiva da história da banda. E atenção que o conceptual, na música, não é uma propriedade exclusiva do rock progressivo ou do art-rock, como os críticos costumam dar a entender. Os temas entre "Time/The End of Time" e "I’’ll Remember" têm valor para serem ouvidos como criações independentes, mas é enquanto parcelas de uma só unidade que eles fazem mais sentido.
No entanto, é nas primeiras cinco faixas de Strange Times que os Chameleons se redescobrem a si mesmos. "Mad Jack" é a canção mais festiva da discografia da banda. Apesar de a letra, sobre a dependência de drogas, ser de uma euforia condenada, a música respira confiança e energia de rejuvenescimento por todos os poros. Caution, que em termos líricos repete a temática da canção anterior, começa com Burgess a entoar a mesma expressão de alegria despreocupada que utilizara no refrão em "Mad Jack" (“pa pa ra pa”), mas de uma forma muito mais fragilizada, até pela atmosfera sombria criada pelas guitarras e pela secção rítmica. Mesmo que o seu riso nesse início pareça um riso inconsciente ou alienado, é um efeito que acaba por intensificar ainda mais o carácter fatalista que a música irá desenvolver ao longo dos seus quase oito minutos, terminando com um grito de raiva e dor que é também um momento único de libertação. "Soul In Isolation" tem a mesma dimensão catártica de Caution e uma urgência agressiva e idealista, como só os Chameleons saberiam criar. Começa com a bateria a envolver-nos com uma dinâmica de provocação-resposta, seguida por uma guitarra a anunciar desde logo o estrondo que se adivinha, seguida pelo pulsar ameaçador do baixo e, no fim, pela voz inquieta e ameaçada de Burgess a cantar “Soul in isolation/I can hear you breathing down the hall/ Soul in isolation/I can hear you whisper through the walls”. Ao contrário da angústia adolescente do grunge e de todas as suas ramificações, a angústia dos Chameleons nunca se deixa contaminar pela degradação, nunca perde a sua dignidade redentora e nunca parece forçada nem caricatural. "Tears", uma canção dedicada um amigo da banda que morrera pouco antes da gravação do álbum, é dos momentos mais sóbrios e, ao mesmo tempo, comoventes de Strange Times, precisamente pela sobriedade com que a morte e o sentimento de perda e de isolamento são evocados.
"Swamp Thing" é, obviamente, um milagre da música alternativa. Para quem ainda não teve o privilégio de a ouvir, é a música rock como sempre julgámos ter ouvido o rock e nunca antes o ouvíramos verdadeiramente. Não só por ser uma canção em estado de graça desde o primeiro segundo, por ter um daqueles inícios que nos basta ouvir uma única vez para sabermos que nos irá fascinar para sempre, por progredir de forma simultaneamente tensa e evocativa, com variações rítmicas e sobressaltos nos precisos instantes em que achamos que é impossível que a música possa ficar ainda melhor, e por nos reconfortar, por fim, com o som gélido e inflamado de uma tempestade purificadora.
As faixas bonus que surgem na edição em CD de Strange Times são, mais do que meras curiosidades, verdadeiros complementos ao álbum original. Principalmente a versão alternativa de "Tears", o sublime "Paradiso" e as covers de "John, I’m Only Dancing" de David Bowie e de "Tomorrow Never Knows", um dos maiores clássicos psicadélicos dos Beatles, ao qual os Chameleons dão uma dimensão épica e uma inovação lírica, ao começarem a música com os primeiros versos de outro clássico dos fab four, "Everybody’s Got Something To Hide Except For Me and My Monkey".
Luís António Coelho
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